Excerto adaptado da introdução ao ensaio “Liberdade, Liberdade, Liberdade” no livro O design por dentro das palavras. Aurelindo Jaime Ceia, designer. Publicada em 2020 pela Editora Caleidoscópio, esta retrospectiva/antologia junta textos originais (Guilherme Sousa, Aurelindo Ceia, Maria Teresa Cruz) e republicados (Aurelindo Ceia, Sónia Rafael), acompanhados por reproduções a cores de mais de trinta projetos de design.

Será Aurelindo Jaime Ceia uma figura com a qual as novas gerações se podem identificar facilmente? Provavelmente não, pelo menos à partida. A sua carreira aparenta ser convencional e o seu perfil não é invulgar: trata-se de mais um designer do sexo masculino, com formação e carreira académica nas Belas-Artes e um portefólio que toca em grande parte das tipologias e clientes que os designers consagrados reúnem ao longo das suas vidas. Tão pouco as suas afinidades, colaborações e referências no universo do design português são surpreendentes: Sebastião Rodrigues, José Brandão, Carlos Rocha, por aí fora. É inegável um sentido de pertença a uma geração na qual identificamos alguns dos designers nacionais mais publicamente respeitados, uma herança que condiciona mais do que clarifica.
Apesar de tudo isto, existem outros factores contrastantes que nos permitem olhar para Ceia como alguém diferente dos seus colegas de profissão e geração. Uma juventude condicionada e parcialmente insatisfeita, um início de carreira tardio e um período muito concentrado onde produziu a maior parte do seu trabalho como designer, professor e autor de vários textos sobre design, são apenas alguns desses aspectos. A dificuldade em catalogar e situar o trabalho de Ceia — um problema até para o próprio — abre a possibilidade de nele se procurarem valores intemporais. É daí que nasce o grande desafio de confrontar o seu trabalho com a actualidade, mesmo sabendo que este muito deve ao seu próprio tempo.

Na discussão sobre o que foi e o que é ser designer de comunicação em Portugal, Ceia pode ser um bom ponto de partida. Em primeiro lugar, porque dedicou tanto tempo a ensinar como a fazer design. A sua actividade enquanto professor, e a forma como a exerceu, é talvez o que mais o distingue dos seus contemporâneos. Isto implicou que nunca perdesse o pulso às novas gerações, independentemente do tipo de relação que tinha com os alunos. Vemos na sua escrita que tanto é capaz de criticar acidamente a juventude como de lhe declarar enorme carinho e respeito. É possível até perceber que o contacto com os alunos mudou a sua forma de pensar. Perante nós, um designer que durante a sua carreira foi obrigado a conhecer e lidar com novas mentalidades, abordagens e tendências, influenciando de forma indelével não só o seu pensamento como a sua prática profissional.
Em segundo lugar, Ceia construiu ao longo da sua carreira um discurso sólido sobre o design, não apenas através dos projectos que concretizou, mas também nos vários textos que escreveu e que expõem de forma bastante directa as suas reflexões acerca da disciplina. São textos que valem por si, mas que se tornam mais reveladores quando procuramos os paralelismos entre a escrita e a prática de design em Ceia. Por sua vez, essa prática materializa-se num número considerável de projectos de identidade visual, cartazes, livros ou materiais efémeros, nos quais desenvolveu uma linguagem conceptual e simbólica transversal. Fê-lo com uma expressão poética e autoral que chega a pôr em causa o papel do prestador de serviços, mesmo que nunca exista uma intenção real de subverter essa posição.
Para perceber melhor esta questão somos obrigados a ter em conta os clientes, pois é também através deles e da relação com eles que se compreende melhor o corpo de obra como tal. Os padrões são facilmente identificáveis, com projectos recorrentes para a área da cultura e com uma percentagem grande de trabalho realizado fora dos grandes centros cosmopolitas, nomeadamente em Torres Vedras. É também essencial mencionar que, em grande parte dos casos, Ceia trabalhou sem remuneração e numa posição em que era simultaneamente designer e cliente. A liberdade autoral que lhe conhecemos hoje deve muito à forma descomprometida como pôde abordar os enunciados. O mesmo é dizer que não teve que ouvir muitas vezes a palavra “não”. Por si só, estas condições impedem-nos de transformar o seu método numa fórmula universal.

Por fim, há uma nota biográfica constante. A carreira de Ceia atravessa alguns dos períodos mais marcantes da história recente do nosso país. Desde o Estado Novo e da Guerra Colonial, passando pela Revolução de Abril e a democratização do país, até à crise recente. Todos estes momentos definidores de uma possível identidade portuguesa contemporânea foram influenciando de várias formas o trabalho de Ceia. Se em 2007 António Nicolas invocava a expressão “Uma Poética Visível” para dar o nome a uma exposição retrospectiva do trabalho de Ceia, podemos falar também de uma poética da memória. Uma memória pública e uma memória privada que se foram cruzando e dialogando e hoje nos permitem perceber como este designer português trabalhou o mundo que o rodeia. Nenhum herói; alguém como nós.
Ceia conquistou o seu espaço no panorama do design nacional ao construir um discurso multidisciplinar sobre o mesmo. Não penso que seja sensato deixá-lo de fora de qualquer história completa da curta existência desta profissão no nosso país. O seu trabalho gráfico é ainda hoje capaz de transmitir o entusiasmo original na resposta ao enunciado em causa, ao mesmo tempo que nos surpreende, inquieta e interroga. Os seus textos ora documentam o desenvolvimento da prática e do ensino do design português, ora surgem como provocações críticas com olhos postos no futuro, sempre de forma sincera e assertiva, tocando em assuntos que habitualmente passam ao lado do discurso público sobre design.
O que mais me cativa no trabalho de Ceia é o seu nível elementar, o processo discreto da procura da utilidade funcional e poética das imagens — o grau zero do projecto. A relevância de Ceia reside, para mim, num plano abstracto: esta visão global consistentemente traduzida nos códigos próprios do seu trabalho. A abordagem de Ceia ao projecto, teorizada nos seus textos e exemplificada no seu trabalho gráfico, mostra como os designers podem sair da sombra confortável de um discurso ao qual apenas dão a forma. O design é demasiadas vezes veículo acrítico da ideologia, fruto de uma necessidade constante de inovar, de ser original, de comunicar eficazmente num mundo que muda cada vez mais rápido e que é cada vez mais difícil de compreender. Pelo meio perde-se o espaço para a reflexão, deixando a disciplina à mercê das tendências e do progresso tecnológico. A grande inquietação de Ceia é a conquista desse espaço e manifesta-se num constante questionamento da prática e da sua relação com o contexto social. Esta reflexão global não pertence exclusivamente aos designers e por isso lhe podemos chamar importante sem reservas.

Enquanto professor, Ceia não ensinou os seus alunos a serem excepcionais. Pelo contrário, incentivou sempre uma procura incessante pela condição do outro, por valores partilhados e não por feitos individuais. Uma busca pela fraternidade como resposta a um mundo imensa e desnecessariamente competitivo. A sua construção ideológica é sempre colocada em contraponto ao mercado e assenta nos valores universais da democracia. Contudo, Ceia nem sempre o fez das maneiras mais óbvias ou consensuais. Em “Cultura contra a indiferença” (2001), texto que apresenta o projecto cultural como via de acção prioritária, Ceia defende as elites culturais como resposta às massas. Afirma mesmo que «sem uma minoria (uma elite cultural), a acção cultural não encontra o seu campo». No paradigma actual, em que populismos emergentes apontam armas às elites, esta ideia toma contornos de tabu ainda maiores. Como é que alguém que se orienta pelos valores da liberdade e da democracia pode defender o elitismo cultural como programa? No caso de Ceia, este elitismo é, para todos os efeitos, tecnocrata: identifica a elite com um grupo minoritário de pessoas mais inteligentes, competentes e profissionais. Embora bem intencionada, pois vê como seu fim uma sociedade mais culta, atenta e crítica, esta visão carrega consigo uma perigosa tendência segregacionista.
Uma elite talentosa pode liderar um movimento de mudança nas bases mas pode também acentuar as assimetrias geracionais e identitárias que dificultam o diálogo. Podemos até argumentar que estas elites já existem — na forma de ministros, secretários de estado, técnicos, reitores — e que é sua a incompetência que permite a existência de falhas graves nas estruturas educativas e profissionais. Em resposta a esta ideia, Ceia argumentaria que o “seu” elitismo não é burocrata — mas não será a burocracia uma consequência natural da ideologia? Não serão os burocratas a manifestação material indispensável do elitismo? O que Ceia parece propor não é uma ruptura, mas uma mera rotação de pessoal.

A discussão das elites não é convocada para aqui para descobrir se Ceia é ou não elitista. Interessa-me mais usá-la como ignição da discussão que anteriormente propus: o cruzamento de gerações. A consequência mais perniciosa deste elitismo cultural é o seu aparente desprezo pelas formas e manifestações culturais massivas que são essenciais para compreender o capitalismo, a sociedade de consumo e, sobretudo, as gerações mais jovens. Ceia não é de todo insensível a uma leitura da cultura enquanto espelho da sociedade. Mesmo que as suas referências estejam circunscritas a expressões de alta-cultura, do cinema clássico, dos grandes autores literários, isso deve-se sobretudo ao facto de ter percebido que ele próprio não podia ser tudo ao mesmo tempo. Na sala de aula, propôs-se a dar aos seus alunos um conjunto de referências muito particulares, sabendo que o resto viria de outro lado — ainda assim, alguns alunos lembrar-se-ão de aí ter ouvido as 24 rosas de José Malhoa.
Mas se a sua relevância contemporânea reside na construção de uma visão global como forma de clarificar a prática e o pensamento do design, falta então conciliá-la com uma leitura não-condescendente da cultura dominante. Esta conciliação toca na ferida aberta de qualquer tentativa de pensar o design como contra-corrente do zeitgeist do mercado — será sequer possível fazê-lo? A carreira de Ceia prova que pelo menos há maneiras de o tentar, mesmo que acreditemos que isso se deveu à conjugação de condições que já não existem. Hoje, o desafio é reivindicar o espaço para uma reflexão colectiva sobre a responsabilidade individual e perceber de uma vez por todas que o design não precisa de se confinar às fronteiras conservadoras que o mercado lhe traçou. Num momento em que os designers, como os profissionais de tantas outras classes, se começam a assombrar com o espectro da automatização, o trabalho de Ceia lembra-nos que há capacidades humanas imprescindíveis e insubstituíveis para a nossa própria sobrevivência.
Guilherme Sousa, 2020

O DESIGN POR DENTRO DAS PALAVRAS. AURELINDO JAIME CEIA, DESIGNER
Autores: Guilherme Sousa; Aurelindo Jaime Ceia
prefácio: maria teresa cruz
design: aurelindo jaime ceia; António Nicolas
Ano: 2020
Páginas: 232
Editor: Caleidoscópio
ISBN: 9789896586393
https://bit.ly/2TLhyCb
“O design por dentro das palavras” é um livro que junta textos originais e republicados, acompanhados por reproduções a cores de mais de trinta projetos da autoria do designer e professor Aurelindo Jaime Ceia. No prefácio “Diálogo com o pensamento escrito de A.J. Ceia”, Maria Teresa Cruz fala de uma «urgência do político e do design como projecto». De seguida, Guilherme Sousa assina o ensaio “Liberdade, Liberdade, Liberdade”, que relaciona o percurso pessoal e profissional de Ceia com o contexto histórico do Portugal pós-25 de Abril. Uma galeria organizada pelos autores apresenta os projetos de design — entre eles cartazes, símbolos ou sistemas de sinalética — e uma antologia breve reúne alguns textos de Ceia, além de uma reflexão de Sónia Rafael e uma entrevista com José Bártolo. O livro encerra com um ensaio autobiográfico de Aurelindo Jaime Ceia intitulado “Depois do silêncio”, onde é recordado na primeira pessoa o percurso pessoal e profissional que enquadra o design e a escrita que este livro analisa.