Design, crise e trabalho

Notas de abertura à participação no congresso:
«O FUTURO DA NOSSA CIDADE: Design + Programação Cultural»
Debate: O design em tempos de crise (com Zoy Anastassakis, Guilherme Sousa e Matthias Ries; moderação de Carla Cardoso)
ESAD (Caldas da Rainha, Portugal)
20 de Outubro de 2020

Sabemos que o mundo está cheio de desigualdades. Os nossos sistemas económicos não conseguem providenciar a todas as pessoas um nível de vida justo. A pandemia de covid-19 expôs as fragilidades nas nossas construções sociais e a vida parece mais precária que nunca para aqueles que menos têm. Problemas novos e antigos são agravados pela ameaça existencial das alterações climáticas. Talvez sintamos que algo fora do vulgar está a acontecer, mas devemos lembrar-nos que não somos os primeiros a viver em crise. Como Lauren Berlant explica no livro Cruel Optimism (2011), nós sempre vivemos num estado de crise sistémica que é um processo do vulgar.

Estas disposições sombrias lembram-me o filme Nightcrawler (2014), a história ficcional de Lou Bloom, um charlatão autodidata que se torna repórter de imagem de cenas de crime. Tendo encontrado o sucesso depois de anos no desemprego, Bloom transforma-se num patrão abusivo que manipula a realidade e inclusive encontra formas de tornar os crimes mais sangrentos. O seu declínio moral é recompensado pelo sistema corporativo dos noticiários televisivos, que alimenta o mundo com imagens de violência e insegurança. Dirigindo-se a uma equipa de novos funcionários da sua empresa, Bloom avisa: «Podem sentir-se confusos às vezes, outras vezes duvidosos. Mas lembrem-se, nunca vos pedirei para fazer alguma coisa que eu próprio não fizesse.»

Na generalidade, o design contemporâneo é uma prática que se adapta facilmente a circunstâncias de crise económica. Mas esta barganha não é boa para os designers, pois acontece sobretudo devido à falta de proteções laborais e à atomização da força de trabalho do design. Existe uma mentalidade solidificada entre os jovens designers que lhes diz que apenas a sorte e bons contactos podem render bons salários, que eles devem baixar os seus preços, trabalhar sob condições precárias e sujeitar-se a abusos de empregadores e clientes. Quando um designer finalmente emerge deste ciclo, é bem possível que dê por si a usar os mesmos métodos de exploração. É verdade que cada vez mais jovens designers têm consciência disso, mas o discurso laboral no design em Portugal ainda precisa de músculo e diversidade. Até lá, momentos excecionais de crise económica apenas podem acentuar as piores tendências de um campo altamente competitivo.

Se este sistema tóxico não for mudado, os designers serão pouco mais que mão-de-obra barata ao serviço do capital. É verdade que esta é a sina global dos trabalhadores no capitalismo, mas aqui devemos olhar para o que os designers fazem. Eles intervêm diretamente na maneira como as outras pessoas vivem as suas vidas, e isso não é coisa pouca. O design planeia a vida social e ajuda a definir as nossas interações com a natureza. Dá forma à informação e ordem às nossas paisagens visuais. Vimo-lo ser usado com grande eficácia em nome do bem e do mal. O design tem a capacidade de lidar com as relações de poder, mas o design não é moralmente bom por defeito. Ao serviço de más intenções, pode absolutamente ser um obstáculo à justiça, à paz e à democracia.

Embora reconheça que ninguém deve abdicar da sua responsabilidade cívica individual, é claro para mim que apenas a ação coletiva pode trazer a mudança necessária. O problema do clima por si só exige essa pluralidade. E porque enfrentamos desafios tão complexos, não acredito em soluções mágicas. A transformação positiva do trabalho em design exigirá tempo e esforço. Contudo, certas condições iniciais deverão ser asseguradas. O trabalho em design deve estar protegido por fortes leis laborais. Como setor da nossa economia, o design deve inspirar investimento público e políticas que sirvam as necessidades da população.

Falar somente de envolvimento público no design pode impedir-nos de avançar soluções concretas. Há coisas que os designers podem fazer nas suas vidas e no seu trabalho por iniciativa própria. Mas nós também sabemos que o chamado design thinking foi responsável por muitas ideias e produtos inúteis, por vezes mesmo delirantes, que em vez de resolverem problemas apenas alimentam o infindável ciclo de produção e consumo. Tais casos mostram como os designers por vezes ignoram a complexidade que existe para lá da sua profissão. De forma a resolver estes vícios profundos, acredito que é preciso uma consulta pública do trabalho em design no nosso país — um censo do design. Esse censo deve perguntar quem trabalha em design, para quem trabalha, como trabalha, quanto dinheiro ganha e por aí fora. Estas são questões vitais às quais têm sido dadas respostas baseadas em assunções, instinto e argumentos de má-fé. Um censo bem desenhado seria um grande primeiro passo que daria aos decisores políticos e aos trabalhadores e pensadores do design uma plataforma para a mudança.

Não ignoro o facto de que, mesmo nas mais adversas realidades, os designers sempre foram capazes de melhorar a vida das outras pessoas através do seu trabalho e imaginação. Isso deve afastar-nos do pessimismo que cresce na nossa sociedade. Mas é preciso ver o outro lado da moeda. Muitos casos de exceção foram usados para fazer afirmações grandiosas sobre a boa vontade do design. Tais fantasias reforçam uma crença há muito cultivada nas sociedades liberais de que uma pessoa pode trabalhar durante o dia e usar o seu tempo livre para salvar o mundo. Mas se os seres humanos quiserem realmente salvar o mundo, terão de o fazer durante o dia, nos seus trabalhos. Historicamente, o local de trabalho tem sido solo fértil para o desenvolvimento social da humanidade. Nesse espaço físico partilhado, as pessoas transcendem muitas das suas diferenças para se tornarem colegas trabalhadores. Mas o local de trabalho no design, e na sociedade contemporânea em geral, é cada vez mais difícil de definir, visto que as pessoas estão cada vez mais afastadas umas das outras. O isolamento e o individualismo são problemas reais no campo do design. Precisamente por causa disso, os designers e o discurso do design devem inspirar solidariedade de classe — construída sobre uma base de justiça económica, racial e de género — em vez de promover o tipo de competição impiedosa que inclina esta profissão no sentido da desigualdade e da exploração.


Guilherme Sousa, 2020

Texto originalmente redigido e lido em inglês. Vídeo do debate disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=399505671437120