
Introdução
Sob a influência do pós-modernismo e do desenvolvimento das ciências sociais no virar do milénio, a antropologia no ocidente assistiu a uma importante renovação teórica em resposta a profundas transformações sociais (Barrett 2009). Entre elas, o crescimento das práticas etnográficas at home e em situação de alteridade mínima coincidiu com uma reconciliação com a materialidade intrínseca do ser humano, nomeadamente a dimensão constitutiva do consumo. Esta viragem, que alguns criticaram como uma apologia do capitalismo, deu a muitos antropólogos uma nova plataforma crítica capaz de ultrapassar as limitações da teoria marxista em sociedades de consumo pós-industriais. Tal desenvolvimento foi essencial para reexaminar a materialidade num sistema-mundo globalizado em que a complexa cadeia de forças sociais estabelecidas pela expansão do capitalismo é um contexto comum às várias formas de localidade, bem como os seus modos de produção. É perante estas forças e os seus efeitos adversos que os indivíduos e grupos tentam levar a cabo os seus projetos — uma ação que, num entendimento alargado, pode ser designada como design mas à qual também poderíamos chamar arte. Para todos os efeitos, situamo-nos no campo do fazer, das coisas e da sua existência no espaço social, onde a manifestação projetual da agência é ela própria uma força material de transformação que importa compreender e clarificar. Nesse sentido, a etnografia sugere um olhar metodológico ao observar na prática as maneiras de objetificar as intenções — o exercer de uma agência humana que participa (contudo, não constitui completamente) na criação da agência própria dos objetos. Este ensaio procura mapear alguns princípios que a antropologia e o método etnográfico orientado para o fazer podem contribuir para a construção de uma crítica social do design, consciente da dinâmica estabelecida entre as intenções projetuais do ser humano, os processos de tradução das mesmas na materialidade e o seu confronto com as forças globais do capitalismo enquanto contexto. Esta renovação poderá dotar a disciplina de uma noção de escala mais adequada aos desafios existenciais que se acentuaram em anos recentes, como o aumento das desigualdades e a crise ambiental. Para lhes responder, não podemos esperar deixar de criar objetos ou consumir mercadorias, mas tornou-se evidente que o nível e modo de produção dominante do capitalismo terá de ser profundamente remodelado para evitar a catástrofe.
A materialidade em contexto
Fluxos globais e a produção da localidade
O atual estado de expansão do capitalismo torna-o num inescapável contexto global da produção e circulação de mercadorias, obrigando a repensar noções de localidade espacial e conceptual, e imaginando o mundo como um sistema interligado por fluxos de adesão ou distanciamento relativos às lógicas capitalistas dominantes. No livro Friction. An Etnography of Global Connection, Anna Tsing refere-se à cadeia das mercadorias como uma “arena de produção cultural” onde é a “fricção”, nem sempre harmoniosa, entre economias culturais que dá forma ao capitalismo global (Tsing 2005). A proliferação do capitalismo está assim diretamente ligada a modos de produzir e fazer circular mercadorias que emergem desta fricção. Contudo, será precipitado dizer que a globalização anula qualquer possibilidade de existência de localidade ou de um panorama cultural heterogéneo. O desafio nesta situação reside precisamente na investigação das condições de produção da localidade em fluxos globais, como afirma Appadurai em “The Production of Locality”, enunciando três factores essenciais deste fenómeno: o desenvolvimento do estado-nação, o fluxo das diásporas e o crescimento das comunidades virtuais e eletrónicas (Appadurai 1996). Não menos importante para a sua teoria são as noções de estrutura de sentimentos, mobilidade global e subjetividade dos mass media, que não serão aqui aprofundadas mas que atestam a fragilidade complexa que configura a produção da localidade no nosso tempo. Mais à frente debruçar-me-ei sobre a possibilidade de os objetos não apenas refletirem contextos, mas sobretudo de os produzirem. Os contextos de localidade gerados em sintonia ou confronto com as lógicas da globalização representam um dos mais importantes temas a explorar no design por estarem diretamente ligados à reclamação do espaço e do tempo na construção social do futuro em tempos de instabilidade — por outras palavras, a possibilidade da resistência através da prática.
O neoliberalismo enquanto contexto
Continuando a analisar o contexto da materialidade na contemporaneidade, não basta falar do sistema capitalista, é necessário precisar as particularidades do neoliberalismo e da sua proliferação a partir do ocidente. Num ensaio intitulado “Dark Anthropology and its Others. Theory since the Eighties”, Sherry Ortner distingue o neoliberalismo enquanto sistema económico do neoliberalismo enquanto forma de governamentalidade (Ortner 2016). O primeiro está registado no aumento da pobreza, deterioração das condições de vida e crescente desespero e depressão entre os mais pobres. O segundo refere-se à atmosfera de medo, instabilidade e insegurança associada à cultura de precariedade valorizada pelo sistema neoliberal. Em conjunto, estas duas dimensões do neoliberalismo constituem o que Ortner chama de “dark moods”, uma estrutura globalizada de sentimentos que transformou a própria antropologia, que teve de se adequar à proliferação acelerada destas condições — primeiro como “dark anthropology” (focada nas misérias produzidas pelo neoliberalismo), depois como antropologia da resistência (ou dos projetos humanos que enfrentam estas misérias). Ao invocar Bourdieu e a teoria da prática, Ortner propõe um certo optimismo resiliente, constatando que se a prática social constrói o mundo “neoliberalizado”, também o pode desmontar e reconstruir.
Projetos de cultura e poder
A antropologia das práticas é desenvolvida de forma relevante para esta sequência de ideias por Ortner no seu livro Anthropology and Social Theory, Culture, Power and the Acting Subject, no qual, ao elaborar sobre a ideia de “serious games”, é estabelecida uma relação dinâmica e transformativa entre indivíduos e forças sociais sob a forma de projetos (Ortner 2006). Estes não são sempre a consequência direta de uma intenção — a sua concretização é complexa, moldada numa tensão constante com as forças sociais e culturais e sempre sujeita às “consequências imprevisíveis dos processos históricos”. Poder e agencialidade são assim duas forças indissociáveis no campo da prática, seja sob a forma de domínio ou de resistência, e é esta dinâmica que está na base de toda a produção de projetos culturais. Reconhecendo tal complexidade, podemos então debruçar-nos sobre a questão da agencialidade no design sem cair em simplificações mágicas do poder da intenção. Evitar esse risco é ainda mais importante em qualquer crítica construída no contexto do sistema capitalista neoliberal globalizado, fonte dos seus próprios projetos culturais de poder e fator de complexificação adicional da cadeia de produção — desde a intenção até à participação das coisas no espaço social.
Agencialidade nos projetos
Arte e agencialidade
Referi anteriormente que o termo “design” seria aqui intercambiável com o termo “arte”, uma liberdade que, sem dúvida, pode resultar em alguma imprecisão disciplinar dada a distinção social que estas duas atividades apresentam enquanto profissão. Contudo, do ponto de vista antropológico, esta imprecisão ajuda-nos a pensar na agencialidade da prática num sentido abstrato, não sendo por demais importante, neste ponto pelo menos, esmiuçar questões de funcionalidade ou autoria que emergem da comparação entre arte e design. Entendo que esta mesma liberdade na terminologia torna a obra Art and Agency de Alfred Gell relevante para o efeito do presente ensaio (Gell 2010). Mais precisamente, a sua teoria relacional da agência social — composta por “índices” (entidades materiais que motivam inferências e interpretações), “artistas” (originadores a quem se atribui a responsabilidade pela existência das características do índice), “recipientes” (em relação a quem os índices exercem agência, ou que exercem agência através dos índices) e “protótipos” (entidades que são representadas pelos índices) — introduz no projeto e nas coisas projetadas uma complexidade adequada àquela que anteriormente procurei sintetizar a propósito do contexto da materialidade. Em Gell encontramos novamente a questão dos efeitos não-intencionais da agencialidade, porventura mais explicitamente na agência social própria das coisas que escapa às intenções originais do projeto e do seu autor. Continuando no mesmo texto, revela-se ainda importante a ideia do rapto da agencialidade — “a indução ao serviço da explicação” — um processo de simplificação que considero próximo do papel social do design enquanto prática do projeto e que é talvez o que torna esse termo tangencialmente mais adequado do que “arte” neste contexto.
Agência social no design
No capítulo “The Social Life of Design” do livro The Future as Cultural Fact, e partindo da sua noção de produção da localidade, Appadurai observa o design não como uma disciplina técnica especializada mas como uma “capacidade humana fundamental e uma fonte primária da ordem social” através da qual a vida quotidiana, até nas sociedades mais simples, é projetada (Appadurai 2013). Nesta aceção, o design não é fruto do desenvolvimento capitalista, mas uma força transformativa que o ser humano emprega desde que se começou a organizar socialmente. Relativamente à tensão anteriormente referida entre arte e design, a sua definição do segundo também é útil à perspectiva antropológica, identificando-o com uma mediação da “relação entre arte, engenharia e os mercados, com os dois últimos acentuando repetição e comodificação e o primeiro acentuando singularidade.” Ao afastar-se de leituras puramente linguísticas ou semióticas dos objetos que nos rodeiam, Appadurai foca-se na nos contextos, não apenas aqueles que os objetos evocam, mas sobretudo os que estes produzem e que, inclusive, contextualizam outros objetos. O problema surge da infinitude de possibilidades que os contextos e a sua manifestação material apresentam, sobretudo em sociedades de produção industrial avançada. Para dar resposta a este dilema, Appadurai aproxima-se da noção de rapto da agencialidade enunciada por Gell, afirmando que “é o design que torna a infinitude potencial dos contextos em algo finito, gramatical e sedutor.” A agência no design é, desta forma, colocada num plano social em que a imaginação humana, individual ou colectiva, está ao serviço da organização da vida quotidiana, da transformação do possível em aceitável e, em última análise, da materialização do futuro através do projeto.
A materialidade das intenções
Com recurso aos textos de Gell e Appadurai, procurei sintetizar uma visão do design que reposicione a disciplina num plano antropológico, cuja maior diferença para o estudos específicos da história e teoria da disciplina é a sua escala. Na forma como o conhecemos, ou como o discutimos publicamente, o design é quase sempre abordado como uma atividade recente (ou até moderna), intimamente ligada ao desenvolvimento da sociedade de consumo capitalista. Mas ao emancipar a sua dimensão de projeto, de resto uma ligação bem explícita no próprio termo em inglês (“to design” como “projetar”), podemos sair da ordem técnica e profissional e, em vez disso, olhar para as maneiras como todos os seres humanos exercem a sua agencialidade de forma mais ou menos planeada ou intencional, um esforço ancestral para mudar, criar, transformar e produzir o mundo social. Esta mudança de perspectiva que surge nos contributos de vários antropólogos é por demais útil num mundo onde as ferramentas de produção da materialidade se disseminaram. A acessibilidade generalizada e simplificada a meios de comunicação visual ou a impressão caseira de objectos tridimensionais, anteriormente apenas possível na produção em massa, são exemplos extremos da ruptura das cadeias tradicionais do capitalismo (elas próprias fruto de desenvolvimentos capitalistas) que ilustram esta disseminação. É certo que a ruptura é relativa, pois os designers profissionais nunca foram os únicos a fazer objetos, mas a visão conservadora da disciplina perpetuou a ideia de que estes, exclusivamente, fariam as coisas bem feitas, belas e realmente úteis, remetendo outras formas de produção para o campo do vernáculo, tido como inferior. A perspectiva antropológica liberta o design deste peso e reconecta-o com a necessidade primária e ancestral do ser humano em produzir o mundo social. Esta relação não é, de resto, uma novidade — Deyan Sudjic, escritor, radialista e diretor do Design Museum de Londres afirma mesmo, ainda que pouco entusiasticamente, que “com o passar do tempo, a história do design emergiu enquanto assunto académico, algures entre os estudos culturais e a antropologia social” (Sudjic 2015). Não me interessa, portanto, negar a existência do design enquanto disciplina profissional com a sua própria teoria e especificidade, nem enunciar este cruzamento disciplinar como “inovação”. Interessa-me, sim, entender como a mudança de escala providenciada pela antropologia pode contribuir para uma redefinição do posicionamento social e político do design num futuro cheio de desafios, entre os quais se destaca a ameaça existencial representada pela progressiva e irreversível destruição de recursos naturais que alimenta a crescente procura de mercadorias ao nível global. Nesse sentido, acredito que a crítica interna do design deve reforçar o seu assimilamento do conhecimento antropológico sobre a materialidade projetada em todas as suas formas, mais ou menos disciplinadas, para melhor compreender como as pessoas se relacionam com as coisas mas também como elas próprias produzem estas teias de relações.
Etnografia do projeto
Método etnográfico
Até aqui, procurei aproximar alguns princípios teóricos da antropologia contemporânea à prática do design, nomeadamente através de conceitos de contexto, agencialidade e organização social. Falta, assim, abordar a questão do trabalho de campo e do seu desenvolvimento metodológico enquanto etnografia. Aproximando-nos de uma conclusão, devemos ter em atenção o campo específico ao qual pretendo dirigir estes contributos: a crítica de design. Não acredito que se possa exigir a críticos de uma determinada profissão ou atividade que se comportem como antropólogos ou etnógrafos. Contudo, o trabalho do crítico de design em muito se pode assemelhar ao do etnógrafo at home. Tendo em conta o papel de simplificação da infinitude de possibilidades que encontramos em Gell e Appadurai, o trabalho do crítico de design pode até ser orientado pela descrição que Stanley Barrett introduz relativamente à antropologia pública, que
(…) nos urge a recorrer ao conhecimento geral de forma a abordar e desmistificar os grandes temas que comandam a atenção e o destino das pessoas na sua vida quotidiana e as ajuda a alcançar uma mudança social equitativa (…) (Barrett 2009)
De forma geral, o olhar do crítico deve ser orientado para dois campos, procurando conjugá-los: primeiro, o campo da produção, espaço das intenções e do fazer; segundo, o campo da agência social dos objetos, que já não depende, necessariamente, dessas mesmas intenções ou processos. A etnografia pode assim ajudar a desmistificar o “génio criativo” do designer e observar o seu trabalho como um processo contínuo de produção de contextos, sejam de localidade, de futuro, de identidade, de comunidade ou qualquer outra dimensão da vida social.
Observar a prática
Apesar de ter separado dois campos de ação dos objetos projetados — produção e espaço social — a sua leitura na prática deve ser fluida e inter-relacional. Esta fluidez é melhor explicada à luz do conceito de improvisação avançado por Tim Ingold e Elizabeth Hallam na introdução a Creativity and Cultural Improvisation. De acordo com estes autores, a antropologia deve desafiar as concepções estabelecidas de criatividade e inovação, particularmente a “polaridade entre novidade e convenção (…), entre inovação dinâmica do presente e tradicionalismo do passado” (Ingold & Hallam 2007). No mesmo texto, a improvisação é caracterizada como sendo generativa (não é dependente das condições de inovação), relacional (não opõe indivíduo à natureza ou sociedade), temporária (porque emerge da propulsão da vida para diante) e, por fim, é “a maneira como trabalhamos” (porque é inseparável da nossa interação com a materialidade). Estas quatro características fundamentais da improvisação colocam em causa aquilo que os autores chamam de uma “leitura da modernidade de trás para a frente”. Para o efeito de uma etnografia do fazer aplicada ao design, é a última das quatro características que se afigura como a mais importante, por desbloquear teoricamente as possibilidades imprevistas das intenções. Com ela em mente, podemos procurar nos objetos não apenas os efeitos esperados da prática que lhe deu forma no campo da matéria, mas também as consequências inesperadas de processos planeados. Um ponto de equilíbrio entre a agência criativa e criadora do design e a agência social dos objetos e seus contextos que nos permite traçar algumas linhas possíveis de projeção do futuro:
Longe de tentar dar um desfecho ao mundo, ou atar pontas soltas, a improvisação aproveita o máximo das múltiplas possibilidades que permitem à vida continuar. Pois o mundo não será encerrado e seguirá o seu rumo independentemente do que possamos ter a dizer sobre ele. A criatividade deste mundo pode ser uma fonte de assombro perpétuo e, de facto (…), de maravilha, mas apenas enquanto não pretendermos controlá-la ou pedir-lhe satisfações, ela não será fonte de surpresas. (Ingold & Hallam 2007)
Construir uma crítica
Voltemos a centrar a discussão na disciplina do design, tendo recorrido à antropologia para introduzir uma escala alargada da ideia ancestral de projetar e materializar as coisas que constituem o nosso mundo. Os princípios que procurei enunciar neste ensaio não formam qualquer tipo de manual de normas para a crítica que penso ser urgente construir e, desde logo, uma das poucas certezas que tenho é que mais cruzamentos com esta e outras áreas do conhecimento são essenciais. Dito isto, tentando aproximar-me de uma espécie de conclusão, divido os contributos aqui apresentados em três grandes temas a aprofundar:
- os contextos da materialidade, mais especificamente a expansão global do capitalismo, da proliferação das lógicas neoliberais e da ameaça existencial representada pelo aumento das desigualdades sociais e da destruição do meio ambiente;
- a universalidade do projeto enquanto expressão de agencialidade, ou a ideia de que o mundo social é construído por ações projetuais desde que existe, contribuindo para uma noção mais completa da materialidade da vida quotidiana;
- a complexidade do funcionamento das intenções, ou o facto de a agencialidade da prática não constituir por completo a agencialidade social dos objetos, como pode ser entendido através do conceito de improvisação.
Estes três fundamentos podem ajudar a construir uma crítica do design mais capaz de responder às urgências do mundo contemporâneo e incentivar uma prática do design mais consciente das maneiras complexas como as pessoas interagem com a materialidade, não apenas como utilizadores, mas também como produtores. Simplificando, o olhar antropológico, introduzindo uma escala ampliada no pensamento projetual, é essencial para resolver o dilema de como trazer mais coisas a uma mundo que delas está saturado.