Design e indústria: um diálogo político

© Inês d’Orey

A importante relação entre design e indústria em Portugal teve um dos seus momentos mais marcantes na 1ª Exposição de Design Português, organizada em 1971 pelo Instituto Nacional de Investigação Industrial (INII). A exposição aparece depois de vários anos de investimento do regime na infraestrutura industrial, argumento económico e retórico que impulsionara simultaneamente a criação de discurso sobre design em Portugal. Foi também em 1971 que, num colóquio associado à exposição, o arquitecto e urbanista Nuno Portas apresentou a comunicação “Política e formação no campo do design”. Esse texto traça uma firme defesa do investimento qualificado na formação dos designers nacionais, defendendo que a maneira de resolver esta formação depende do papel que se atribui aos designers num país pobre e em busca do seu arranque industrial competitivo. 

Portas começa por identificar três tipos de designer: o cosmeticista (que trabalha o aspecto e a superfície dos objectos); o funcionalista (que domina e privilegia a função e o uso); e o designer “sistémico” ou “ecologista” (que participa das decisões de política de produção). Este último tem a capacidade de compreender e trabalhar a vasta rede de sistemas adjacentes ao planeamento, produção e eliminação das mercadorias, uma “estrutura profunda” dos objectos que inclui a “definição dos objectivos do produto no sistema de consumo”, a ponderação dos “efeitos, directos ou laterais, dos produtos” e o “pensamento do objecto como elemento dotado de carga simbólica”. 

A definição do perfil de designer sistémico surge para provocar uma discussão sobre o planeamento e a organização da produção industrial e simultaneamente sobre a organização de um ensino capaz de formar este designer. O modelo defendido prevê um grande investimento público, sendo público também o interesse em democratizar a melhoria dos produtos através do design e de descobrir vias próprias de conhecimento e produção inspiradas pela realidade económica e social do país. Por fim, importa referir que o texto deixa claro que os designers não devem entrar nas estruturas como “planeadores centrais” que decidem tudo e mais alguma coisa; pelo contrário devem integrar-se nas equipas e “estimular toda a iniciativa sectorial”.

Interessa-me esta comunicação porque acredito tratar-se de um texto particularmente certeiro no seu diagnóstico, levantando por altura da primeira grande exposição de design português questões que continuam hoje tão actuais como inquietantes. Ainda que sem o explicitar, problematiza o ADN capitalista do design industrial, associado desde cedo a uma insustentável cultura de consumo e desperdício. Fá-lo para poder reconciliar o design com os desafios da modernidade: uma necessidade que se tornou urgência com o rápido declínio das condições ambientais nas últimas décadas. Esta reconciliação é, por sua vez, consciente da importância do sector industrial em Portugal. No fundo, Nuno Portas explora uma relação recíproca na qual o design contribui ao sector da indústria a sua capacidade de planeamento projectual abrangente, ao mesmo tempo que a disciplina se institui na sociedade ao envolver-se cada vez mais com a realidade material do país.

A proposta dos curadores Megan Dinius e Michel Charlot em Portugal Industrial pretende continuar este diálogo e evidenciar a qualidade da indústria portuguesa através da sua produção, colocando-a como alternativa aos destinos mais comuns das grandes operações, com a China em destaque. Assim, apresentam objectos tão distintos como peças de calçado, cutelaria, mobiliário ou artigos de desporto, entre muitos outros. São maioritariamente objectos do quotidiano, utilitários ou ferramentas que raramente vemos associados à palavra design, ainda reservada no léxico mainstream para qualificar artigos exclusivos ou de luxo: coisas de autor. Desafiando essa percepção, Portugal Industrial procura a autoria no projecto global, assinalado pelo nome das marcas ou fábricas — uma noção mais completa da origem dos produtos, na qual se valoriza a boa integração do design na cadeia de produção industrial.

Naturalmente, não é fácil verificar esta qualidade num contexto de exposição — não se experiencia apenas com o olhar aquilo que é feito para ser usado. Contudo, o uso é apenas uma dimensão da longa vida de um objecto que existiu em potência durante o seu fabrico e que será útil até ser desperdício. Por isso, esta exposição pede ao seu visitante que entenda os objectos como a materialização de uma complexa rede de sistemas, afirmando-os como o resultado da excelência no nosso sector industrial. Esta mensagem é posicionada num mundo globalizado cuja cultura material tem origens nos locais mais distantes, uma consequência da incessante busca pelo lucro, tantas vezes à custa do desprezo pelos mais básicos direitos humanos e pela sustentabilidade do planeta.

Por se referir a esta intrincada teia de relações e consequências, Portugal Industrial não deve funcionar apenas como o retrato orgulhoso de um país. Às possibilidades enunciadas opõem-se desafios hercúleos. Em 1971, em plena celebração do progresso industrial no país, Nuno Portas soube avaliar os desafios desse mesmo tempo. Tantos anos depois, estes apenas se agravaram. Da mesma forma, a tese da comunicação aqui referida continua válida. O diálogo entre design e indústria pode ser uma força motriz para o desenvolvimento dos dois sectores e do próprio país. 

É do sector industrial e das suas actividades tangentes que sai algum do discurso laboral mais vincado em Portugal, aquele que nos telejornais continua a representar uma classe operária traída pela globalização e atingida pela austeridade. Desde os estivadores do Porto de Setúbal às trabalhadoras da fábrica da Triumph, estas são vozes absolutamente essenciais para a construção de um modelo social mais justo. Uma consciência de classe constantemente em confronto com o rolo compressor do comércio e da finança — aí está um conflito ainda muito ausente do nosso discurso sobre design.

Por outro lado, o design tem conhecimento a contribuir para a indústria, nomeadamente uma visão global cada vez mais adequada ao terreno minado do consumo e produção de bens no nosso tempo. O “designer sistémico”, talvez mais uma figura abstracta do que um perfil bem definido, pode ser o elemento clarificador destas tensões. Mas como se promove a integração do design na indústria da forma mais correcta ao nível nacional? Para começar, podemos voltar à comunicação de Nuno Portas e à ideia de política e formação no design, que me atrevo a traduzir aqui para a formação política de designers. A preparação, financiada pelo sector público, de designers conscientes do lugar global da nossa indústria e da sua capacidade de agir sobre a gestão de recursos, a segurança do trabalho, o controlo de qualidade, a democratização do acesso a bens essenciais, … — no fundo, o universo de influência da produção de mercadorias. Se há algo concreto que a exposição Portugal Industrial pode inspirar é a coragem em realizar esse investimento, não apenas sob a forma de bolsas ou fundos, mas idealmente através de uma ambiciosa política para o design em Portugal.


Guilherme Sousa, 2019
Este texto foi originalmente publicado no livro
PORTUGAL INDUSTRIAL – LIGAÇÕES ENTRE O DESIGN E A INDÚSTRIA
Textos: José Bártolo; Guilherme Sousa; Megan Dinius
Coordenação Editorial: Andreia Faria
Design Gráfico: Nonverbal Club
305 x 215 mm | 236 páginas | brochura | PT/EN | 978-989-54525-1-4 | setembro 2019 | PVP 22,00€
https://portodesignbiennale.pt/pt/publications/portugal-industrial