
Introdução
Assumindo a perspetiva da antropologia visual como ferramenta de estudo da visualidade produzida pelos seres humanos, este ensaio procura demonstrar como a etnografia pode desbloquear alguns temas profundos subjacentes às mais banais expressões visuais. Neste caso, o texto debruça-se sobre as fotografias encontradas em calendários de bolso publicitários dos anos 80 do século XX, em Portugal. Apesar de terem uma função comercial primária evidente — o anúncio de um produto ou serviço —, estas imagens fotográficas não legendadas levantam uma série de questões acerca do processo de comunicação que integram. Depois de observar, descrever e comparar as imagens, proponho que o seu valor antropológico reside naquilo que nos dizem acerca da construção cultural do mundo e da felicidade numa sociedade de consumo. Defendo ainda que, substituindo-se à experiência do real, a fruição destas fotografias constitui, de facto, uma participação estética no projeto de felicidade do capitalismo.

Materiais, método e critérios
O corpo de imagens que é objeto de análise deste ensaio foi extraído de uma coleção pessoal de calendários de bolso “construída” entre as décadas de 70 e 80 do século passado. Salvo raras excepções, tratam-se de objetos publicitários bastante simples, de pequenas dimensões, contendo numa face uma imagem ou anúncio, e na outra o calendário do ano de emissão (ou do ano seguinte, se quisermos ser mais precisos, visto que habitualmente os calendários são impressos no ano anterior ao que apresentam). Esta coleção pertencia à minha mãe, que guardou todos os calendários que acumulou no período mencionado, sem qualquer tipo de lógica “curatorial”. Guardou-os por curiosidade, pensando num hipotético interesse futuro, da memória, que finalmente surgiu quando recentemente os reencontrou num arrumo e mos ofereceu. A maioria é referente a negócios do norte de Portugal, sobretudo de Vila Real (cidade natal da minha mãe, e minha também) e do Porto (onde a minha mãe estudou nos anos 80). Pesquisando por coleções semelhantes e conversando com outras pessoas, tudo me leva a crer que não há nada de realmente excepcional neste conjunto, e que ele representa mais ou menos bem o tipo de calendários que circulavam nessa época. Esta banalidade é determinante para o exercício, pois permite algum grau de generalização das conclusões, se estas existirem. A coleção completa totalizará várias centenas, talvez milhares, de exemplares únicos, não catalogados ou organizados, tornando-a num corpo de materiais bastante difícil de abordar de um ponto de vista académico. Como tal, optei por procurar um critério que me permitisse trabalhar um número mais reduzido de objetos sem, no entanto, sacrificar completamente a sua diversidade e aquilo que considero ser uma “sensação” ou ideia geral que a observação da coleção completa é capaz de expressar. Acabei, assim, por escolher apenas aqueles exemplares que, na face oposta ao calendário, continham uma imagem fotográfica sem qualquer tipo de legenda ou título. A face informativa, onde por vezes nem figura o anunciante, não será considerada neste ensaio. Porém, ela foi importante para garantir que, por exemplo, não reunira um conjunto de calendários provenientes de um grupo pouco representativo de anunciantes ou datas de emissão, ou que certo tipo de imagens não se repetia apenas por pertencer ao mesmo anunciante. No geral, permitiu-me ainda registar a dissonância existente entre muitas imagens e o tipo de negócio que o calendário anuncia. Centrando o meu interesse na fotografia e aplicando este critério, contabilizo exatamente 150 imagens únicas.
Nas próximas páginas falarei das imagens na sua dimensão puramente visual, como que sem corpo, o que significa não aprofundar a sua materialidade ou o seu plano de produção. Por outras palavras, o foco estará naquilo que as imagens mostram, não tanto na maneira como foram fotografadas, impressas, reproduzidas, distribuídas, etc. Estou ciente que, para realmente estudar os calendários como objetos publicitários, esta dimensão da produção deve ser tida em conta, mas neste caso debruçar-me-ei quase exclusivamente sobre o que é representado. Com isto, procuro colocar-me num plano de leitura descontextualizado, próximo do dos receptores destas imagens no seu tempo, bem como dos receptores atuais que, como eu, com elas se cruzam. Por outro lado, a descontextualização parece ser um processo que se desenrola amiúde na constituição dos calendários enquanto suporte de comunicação visual. Grande parte das imagens em pouco ou nada se relaciona com o ramo de atividade do anunciante — um astrólogo e um café-bar, ambos usam imagens de carros clássicos; os nus femininos tanto servem para anunciar um negócio pronto-a-vestir como um agrupamento musical. Esta constatação leva-me a considerar que não devemos procurar nos calendários de bolso um processo simples de comunicação em que o recetor relaciona diretamente a imagem com um determinado negócio. Além disso, é preciso pensar para lá das intenções originais de quem emite a mensagem, reconhecendo a agência própria que estas imagens têm no espaço social, isoladamente ou em conjunto.
A oferta da fotografia e a sua circulação imprevisível devido ao tamanho portátil fazem parte de um plano maior de produção e consumo de imagens que inevitavelmente expressa um determinado zeitgeist. O contacto casual que era estabelecido com estas imagens soltas não difere muito daquilo que passou a acontecer posteriormente no ambiente digital, eminentemente constituído por imagens sem contexto e às quais atribuímos, por regra, pouca importância. Em ambos os casos, é praticamente impossível estruturar uma análise de todas as imagens, mas podemos segmentar e analisar certos olhares sobre certas imagens — alguém editou e distribuiu estas imagens; alguém as recebeu, viu e guardou. Este conjunto de calendários é uma excisão desse corpo gigante de imagens, através do qual, com alguns cuidados metodológicos, procurei refletir acerca das possibilidades de criar uma leitura antropológica. Central a este exercício é a admissão da dualidade construtiva, mas perigosa, da fotografia de acordo com Macdougall, quando afirma que uma fotografia sem legenda está “cheia de potencial não direcionado.” (Macdougall 1997, 289)
Feita a seleção das imagens, observei que as mesmas poderiam ser agrupadas de acordo com o assunto representado. Naturalmente, estes agrupamentos são totalmente arbitrários e outra pessoa certamente os poderia configurar de forma diferente, ou não configurar de todo. Ainda assim, considero este processo útil pois permite introduzir um primeiro grau de leitura no conjunto, mais especificamente no que diz respeito aos temas semelhantes que diferentes anunciantes acharam pertinente editar, e assim se aproximam do que poderíamos chamar uma moda ou tendência. Deste meu critério de organização resultaram 11 pranchas, cujos assuntos passo a listar: natureza, rio, mar, animais, crianças, adultos, património, cidade & arredores, veículos, loja, produto. A definição destes conjuntos implicou a não-definição de outros, como por exemplo “cães” (entre os “animais”), “carros” (entre os “veículos”) ou “erótica” (entre os “adultos”). A decisão de não segmentar de tal forma estes conjuntos prende-se com a intenção de não perder o propósito do agrupamento: adicionar um nível de leitura das semelhanças que, ainda assim, seja suficientemente superficial para nos permitir contactar com as imagens num “olhar geral”. De resto, não utilizarei estes grupos como categorias fechadas ou definitivas e gostaria de deixar em aberto a sua recomposição aos olhos do leitor deste ensaio. A organização por pranchas é uma abordagem metodológica que aproprio tangencialmente do Atlas de Imagens Menmósine de Aby Warburg, bem como da sua exploração pelo filósofo e historiador Georges Didi-Huberman, que o descreve da seguinte forma:
Nem desordem absolutamente louca, nem ordenação muito sensata, (…) delega na montagem a capacidade de produzir, através de encontros de imagens, um conhecimento dialético da cultura ocidental, essa tragédia sempre renovada (…) (Didi-Huberman 2013, 21)
É a leitura dos intervalos, feita na comparação e no contacto das imagens, que procuro pôr ao serviço de um texto antropológico emergente destes calendários. Ao desmaterializar as fotografias, e posteriormente agrupá-las de acordo com semelhanças possíveis e diferenças imagináveis, pretendo emancipar a sua dualidade entre estética e epistemologia. Novamente na palavras de Didi-Huberman:
Contra toda a pureza epistémica, o atlas introduz no saber a dimensão sensível, o diverso, o carácter lacunar de cada imagem. Contra toda a pureza estética, introduz o múltiplo, o diverso, a hibridez de toda a montagem. (Didi-Huberman 2013, 12)
Embora este ensaio se permita a uma liberdade imaginativa na sua abordagem a estas fotografias, descontextualizando-as parcialmente de um corpo material concreto e do seu propósito publicitário original, não é minha intenção escrevê-lo como mera celebração estética de uma expressão visual. A intenção subjacente é a de encarar estas imagens, banalizadas pelo seu carácter genérico e cristalizadas na memória pela nostalgia, enquanto artefactos etnográficos importantes para perceber o contexto social onde existem — para mim, uma posição de investigação at home, em alteridade mínima. Assumo a definição da antropologia visual proposta por Macdougall no texto supracitado como o estudo de “(…) qualquer um dos sistemas expressivos da sociedade humana que comunique significados parcial ou inteiramente através de meios visuais.” (Macdougall 1997, 283)
Criadas com um propósito comercial claro, estas fotografias são testemunho de um momento social determinante, quando a democracia liberal e o investimento económico do projeto europeu representaram, em Portugal, um factor de modernização e optimismo, que porventura terá durado até à recente crise global de 2008 e a consequente desilusão com as políticas de austeridade neoliberal. Naturalmente, com os recursos de informação e conhecimento ao nosso dispor, não precisamos destas imagens para saber o que aconteceu. Contudo, podemos através delas perceber como imaginámos o mundo, como processámos essa imagem mental enquanto projeto de futuro, de aspiração individual e coletiva, de formas muito mais complexas do que pode ser expresso através da observação positivista do real. Com a devida distância temporal face ao optimismo do momento, podemos refletir sobre como as imagens mais banais e insignificantes participaram na nossa construção cultural da realidade, um conhecimento por demais útil numa era da visualidade ultra-rápida. Repito a ideia de que a banalidade é essencial e que poderia certamente olhar para uma infinidade de outros artefactos visuais contemporâneos a estes calendários para realizar um exercício semelhante. Ainda assim, os calendários de bolso apresentam algumas características de grande interesse, como a sua dimensão portátil, a reprodução em série, a sua natureza comercial e consumista, a sua ligação inexorável ao tempo, a sua funcionalidade prática precisamente datada (um ano), período após o qual apenas o exercício da memória será capaz de resgatar, alienando, estes objetos. Estes e outros problemas colocados pelas imagens são, em última análise, resolvidos em processos mentais simples: levar para casa ou não, mais tarde guardar ou deitar fora, porventura um dia vender, comprar ou ignorar. Por trás destes processos reside a nossa complexa interação com o mundo através da fotografia.

Imaginar com o real
Nas últimas linhas de Pequena História da Fotografia,Walter Benjamin interroga-se sobre o futuro da literacia fotográfica:
«O analfabeto do futuro será não o incapaz de escrever, mas o incapaz de fotografar.» Mas não terá de ser considerado pouco mais do que analfabeto o fotógrafo que não sabe ler as suas fotografias? Não se tornará a legendagem uma parte essencial da fotografia? (Benjamin 2012, 112)
Embora a questão pareça originalmente orientada para o indivíduo e a sua capacidade de fotografar, faz sentido colocá-la também no plano social e cultural num panorama global onde os avanços tecnológicos, ainda que desiguais entre territórios, desencadearam uma massificação da utilização das imagens, e mais especificamente da imagem fotográfica, como um importantíssimo meio de comunicação. Defendendo-a como material etnográfico relevante, a investigadora Sylvia Caiuby Novaes afirma que:
(…) a fotografia é fundamentalmente comunicação e seu uso numa perspectiva antropológica deve ser repensado a partir da natureza mesma da fotografia, de seu modo muito específico de estabelecer relações com as pessoas e que a afastam dos modos consagrados de um discurso tipicamente acadêmico em nossa disciplina. (Novaes 2014, 58)
A ideia de vivermos rodeados de imagens está gravada profundamente no tecido social, de tal forma que é fácil perder o rasto de inúmeras expressões visuais que, ainda que banais, encerram em si a possibilidade de dizer tanto sobre nós como outras expressões artísticas tidas como mais nobres, ou mesmo o filme etnográfico, objeto central da antropologia visual. As fotografias dos calendários de bolso que aqui apresento colocam diante de nós essa hipótese: o seu propósito funcional é simples (anunciar um negócio) e uma certa indistinção das imagens banaliza-as; ao mesmo tempo, a sua proliferação e a emergência de certos temas ou assuntos (como tentei ilustrar na organização em pranchas) possibilita leituras alienadas do propósito funcional e focadas nas expressão antropológica resultante.
Benjamin destaca o papel da legenda e é a ausência da mesma que torna as fotografias dos calendários em imagens intrigantes. Desde logo porque alguém, algures, em algum momento, considerou que uma determinada imagem poderia falar por si. Por mais irreflectida que possa ter sido essa decisão, não deixa de ser uma recusa da legenda. Talvez o dono de uma pequena loja de roupa tenha recorrido ao serviço de tipografia que imprime imagens de stock no verso de calendários de bolso; ou talvez um gabinete de comunicação e imagem de uma empresa multinacional tenha deliberado cuidadosamente acerca da melhor fotografia para representar um artigo seu. No universo dos artefactos visuais o resultado é o mesmo, novas imagens sem legenda foram produzidas e colocadas em circulação. Não existem absolutamente isoladas de contexto, a sua edição está desde logo situada no tempo e o seu propósito concreto, o de anunciar, também pode ser facilmente depreendido. Na maioria dos casos, temos até conhecimento de um dos agentes envolvidos no processo, a marca ou negócio que anuncia. Mas nada sobre as fotografias, sobre aquilo que retratam e aquilo que representam — cabe ao observador olhar e decidir, se possível desvendar, mas sobretudo equacionar as possibilidades. Procurar aceder ao conhecimento do “inconsciente óptico”, segundo Benjamin, que afirma:
(…) quem contempla a fotografia sente o impulso irresistível de procurar, aqui e agora, o cintilar insignificante do acaso com o qual a realidade, por assim dizer, ateou o carácter da imagem, sente o impulso irresistível de encontrar o ponto singelo em que a existência de cada minuto há muito decorrido contém o vindouro e de forma tão convincente, retrospectivamente, o podemos descobrir. (Benjamin 2012, 100)
Os assuntos das fotografias destes calendário são em grande parte impessoais, imagens genéricas cuja intimidade com o observador não é constituída por uma relação de conhecimento direto do seu objeto ou sujeito. Faz bastante mais sentido, a meu ver, pensar nelas como dispositivos de evocação livre que contaminam o quotidiano. Um estudo etnográfico poderia ajudar-nos a perceber que tipo de atenção as pessoas prestam a estas imagens, porque as guardam ou o que pensam ao olhá-las. Na falta desses dados, teremos de deixar bastantes possibilidades em aberto, mas não podemos ignorar que a sua mera existência nos obriga a tecer um determinado tipo de consideração, entre as quais está, sem dúvida, a de ignorar ou menosprezar.
Refletindo adicionalmente sobre o contexto social em que estes calendários foram produzidos — os anos 80 em Portugal — falamos de um período em que os processos de modernização prometiam novas possibilidades de acesso a uma cultura global de consumo, bem como o desenvolvimento de uma classe média financeiramente empoderada. Poderíamos desde logo enunciar a íntima relação entre fotografia e modernidade, citando Susan Sontag quando constata que:
(…) uma sociedade torna-se «moderna» quando uma das suas principais atividades é produzir e consumir imagens, quando as imagens, que influenciam extraordinariamente a determinação das nossas exigências para com a realidade e são elas mesmas um substituto cobiçado da experiência autêntica, passam a ser indispensáveis para a saúde da economia, para a estabilidade da política e para a procura da felicidade privada. (Sontag 2012, 149-150)
Nesta lógica, somos redirecionados para as considerações de Benjamin sobre a literacia visual, mas além disso passamos a ter nas imagens não apenas uma evocação do espaço imaginado com a matéria do real, mas um “substituto da experiência” e, de facto, uma maneira de experienciar o mundo em si. Referindo-se à teoria do consumo nas sociedades industriais desenvolvida por Daniel Miller, precisamente nos anos 80, Alice Duarte afirma que
Temos uma sociedade industrial que produz e distribui grande quantidade e variedade de produtos através de instituições de larga escala. A cultura material assim criada é uma das projecções externas dessa sociedade; trata-se de alcançar a reincorporação, na própria sociedade, dessa externalização. (Duarte 2010, 377)
Neste sentido, podemos olhar para os calendários de bolso como materialização da modernidade enquanto projeto político, social e cultural, e a sua produção, circulação e utilização como uma prática concreta da experiência do consumo. Tanto a um nível imediato (observável na natureza optimista das imagens, repletas de objetos de desejo e felicidade aspiracional) como também a um nível metafísico (enquanto documentação do ato de comunicar visualmente o consumo), falamos sem dúvida de artefactos etnográficos. Por fim, como as mercadorias que publicitam no espaço social, os calendários são uma manifestação cultural do consumo. Apropriando novamente as observações de Alice Duarte a propósito de Miller e das mercadorias:
A autenticidade dos artefactos como cultura não deriva da sua relação com algum estilo histórico ou processo de manufacturação específico, i. e., não há qualquer verdade ou falsidade imanente neles; há antes a sua participação activa num processo de autocriação social, pelo qual se tornam directamente constitutivos do entendimento de nós próprios e dos outros. (Duarte 2010, 377-378)
O interesse etnográfico nestas imagens reside, então, no facto de elas materializam o processo de comunicação das forças de desenvolvimento do consumo capitalista com as pessoas, os consumidores. E enquanto nos calendários com grafismos, títulos ou slogans a verbalização da mensagem limita as possibilidades imaginativas, nas fotografias isoladas e descontextualizadas a mensagem permanece ambígua e a imagem é mais facilmente alienada da sua intenção original. Somos instados a questionar. Porquê tantas fotografias semelhantes? Porquê oferecer uma imagem genérica a um desconhecido? Que relações se estabelecem entre as figurações encenadas da natureza e da sociedade com o ato desejado do consumo? Porque se “falou” com estas imagens? O que se quis dizer? E o que entendemos nós?

Mundo das imagens
Um olhar geral sobre as pranchas de imagens pode constatar a existência do que considero ser uma visão otimista do mundo. Os temas são convencionais e convencionalmente fotografados, e por regra apresentados como objeto de desejo aspiracional. Na prancha 1 vemos uma natureza anónima, representada por três paisagens amplas, um casa no campo e cinco fotografias de flores. Na prancha 2 a presença dominante continua a ser natural — o rio — mas cruza-se já com uma variedade de construções humanas e é possível distinguir cidades como o Porto ou Lisboa. Na prancha 3, que poderia até cruzar-se com a anterior, temos o mar, que em todas as imagens excepto uma contracena com praias, algumas das quais poderíamos situar no mapa. Na prancha 4 entramos no mundo animal, quase sempre submetido à ordem humana, como podemos constatar pelo predomínio dos animais de estimação; como excepção à regra, as duas imagens de caça tornam-se praticamente mórbidas no contraste com a inocência das restantes. Na prancha 5, as crianças — talvez configurando a mais compreensível expressão de felicidade — e curiosamente, ainda os animais. Na prancha 6 está o mundo adulto: em grupo, em casal, no corpo feminino objetificado ou na solidão ambígua de um palhaço. Seguindo para a prancha 7, mergulhamos na construção humana e na representação do seu património histórico. Na prancha 8 a construção é moderna, e as estradas, embora vazias, sugerem a velocidade do quotidiano que as atravessa. A velocidade pode muito bem ser um segundo tema da prancha 9, onde encontramos veículos, sobretudo automóveis, novos e antigos, em corrida ou exposição — um conjunto desconcertado pela fotografia de um acidente de mota. Na prancha 10 chegamos ao consumo e à relação mais evidente entre imagem e anunciante, uma vez que temos fotografias das lojas — do seus interiores ou fachadas — iluminadas e convidativas. Finalmente, na prancha 10 está a força que pôs em curso este processo de comunicação: a mercadoria — aqui representada literalmente nos produtos cuidadosamente apresentados (excepto na estranha imagem desenquadrada de um candeeiro), apelando ao desejo de consumo, perfeitamente integradas no universo de espaços, pessoas e animais que anteriormente descrevi.
Em conjunto, estas fotografias são uma construção cultural da felicidade, feita de paisagens idílicas, caras alegres e bens de consumo. Partilham essa característica com a coleção maior da qual provêm — o mesmo é dizer que, quando retiradas dos corpo original de calendários, as fotografias sem legenda continuam a expressar a mesma visão positiva do mundo através do consumo. Mesmo as imagens naturais ou os retratos mais simples são transformados em objeto de consumo no campo da fruição estética. É talvez uma das perguntas mais óbvias, mas certamente das mais relevantes: porquê anunciar um serviço ou produto com uma imagem não-relacionada de uma praia ou de um automóvel? A resposta semiótica é elusiva, mas do ponto de vista antropológico podemos encontrar algum sentido na lógica de oferecer imagens de uma felicidade aspiracional, um desejo algo abstrato cuja satisfação pode ser encontrada no imediato no adquirir de um determinado bem de consumo. Talvez porque seja benéfico a uma sociedade de consumo, mesmo na pequena escala dos negócios locais, ter um público-alvo feliz, disposto a consumir na procura de mais felicidade quotidiana, aqui evocada pela fotografia.
Seria tentador afirmar que a felicidade representada é apenas uma construção, que não é real pois escolhe mostrar do mundo apenas as coisas felizes. Contudo, podemos contra-argumentar que mesmo sendo imaginada e construída, esta felicidade é real por se ter materializado em imagens. Convoco novamente Susan Sontag quando afirma que as fotografias podem usurpar a realidade por não serem apenas imagens, mas rastos diretos do real:
uma fotografia nunca é menos do que o registo de uma emanação (ondas de luz refletidas pelos objetos), um vestígio material daquilo que foi fotografado e que é inacessível a qualquer pintura. (Sontag 2012, 150)
E de forma ainda mais relevante para o tema deste ensaio:
Através das fotografia temos também uma relação de consumo com os acontecimentos, tanto com os que fazem parte da nossa experiência como com os outros, e são os hábitos que esse consumismo inculca que tornam vaga a distinção entre esses tipo de experiência. (Sontag 2012, 152)
“Ter uma fotografia de Shakespeare seria como ter um prego da Autêntica Cruz” (Sontag 2012, 150). Numa sociedade de consumo é tão ou mais importante o que não se tem ou não se pode ter do que aquilo que se possui. A fotografia, que como vimos se pode substituir à experiência inalcançável, coloca perante o observador imagens de uma felicidade possível, que assim a experiencia visualmente. É fácil observar processos semelhantes a acontecer na atualidade, e ver como uma crítica comum das redes sociais consiste na refutação da sua construção artificial da felicidade, tida como enganadora ou supérflua. Com uma pesquisa mais aprofundada, chegaríamos à conclusão que estes processos são absolutamente centrais ao funcionamento do capitalismo. As imagens do mundo são um mundo de imagens, e o seu consumo não decorre fruto de uma mera manipulação do espírito humano, mas é o veículo de uma experiência estética da felicidade.
Este consumo das imagens esconde o seu próprio oceano de particularidades, sobre os quais aqui não me debruço. É importante considerar que esta felicidade fotografada pode ser experienciada de formas díspares: pela adesão ou pela rejeição, como fuga da realidade ou como acesso a ela, como mero pano de fundo a um desenrolar da vida quotidiana ou como objeto constituinte da memória privada. Por desencadearem estas ações, e ao revelarem a sua agência social, afirmam-se como objetos etnográficos que podem ser estudados como uma manifestação cultural do consumo. Para lá de noções de realidade ou ficção, são uma construção visual de facto, que através do registo do real materializam um status quo político e social e o desbloqueiam à luz do conhecimento antropológico. Para Warburg, usar “o conhecimento pela imaginação” e “ler o que nunca foi escrito” (Didi-Huberman 2013, 16).