
Introdução
A crise financeira de 2008 assinalou o início de um longo período de austeridade em Portugal, cujos efeitos de transformação cultural não podem ser totalmente compreendidos, por estarem ainda em curso. O mesmo pode ser dito sobre outros fenómenos globais recentes, como a ameaça ao status quo das democracias liberais ou a consciencialização crescente sobre a gravidade da situação climática. O agravamento generalizado destas condições acentua um sentimento de crise e instabilidade em grande parte da humanidade, que é confrontada com a indiferença governativa e aparente prosperidade do grande capital. Esta dissonância permanente contextualiza toda a produção cultural e é ela própria uma força de transformação social. A proliferação dos meios de produção e distribuição em rede permitem-nos hoje observar, quase em tempo real, a forma como as pessoas reagem culturalmente à mudança política. Mas o mesmo acesso não é tão simples e direto no que diz respeito à prática, às maneiras como a instabilidade participa no fazer dos objetos culturais. No artigo “Dark Anthropology and its Others. Theory since the Eighties”, Sherry Ortner escreve sobre “dark moods”, estruturas de sentimento do mundo neoliberalizado que se encontram também na cultura (Ortner 2016, 55). Visto que toda esta cultura tem de ser feita na prática, podemos procurar, através da etnografia, os traços do contexto de crise e instabilidade que se manifestam no fazer. Ao investigar a tradução cultural deste sentimento de instabilidade do capitalismo global, interessa-me observar as formas da prática dentro de uma definição alargada de disciplinas do projeto, que inclui o design, a arquitectura, a moda, as artes plásticas, a música, entre outras expressões que se possam considerar “projetadas”. Em segundo lugar, interessam-me as manifestações locais ou localizadas destes fenómenos, em grupos e indivíduos. No caso de Portugal, por exemplo, interessa-me a geração formada académica ou profissionalmente após 2008, e a sua prática no atual período de instabilidade e turbulência. Na perspetiva de uma antropologia da prática, atribuo particular relevância à questão da aprendizagem, por constituir a base de todo o fazer futuro e por acontecer, habitualmente, num período de transformação pessoal e de grande reflexão sobre o mundo e a agência que o indivíduo tem sobre ele. Num sentido de estudo da materialidade projetada, procuro explorar a noção de “biografia das coisas” avançadas por Igor Kopytoff:
Ao fazer a biografia de uma coisa, devemos fazer as mesmas perguntas que fazemos a uma pessoa: Quais são, sociologicamente, as possibilidades biográficas inerentes ao seu “status”, período e cultura e como são realizadas estas possibilidades? De onde vem a coisa e quem a fez? Qual foi a sua carreira até agora e o que é que as pessoas consideram ser uma carreira ideal para tal coisa? Quais são as “idades” ou períodos na “vida” dessa coisa e quais são as suas marcas culturais? Como é que a utilização desta coisa muda com a sua idade e o que acontece quando ela deixa de ser útil? (Kopytoff 1986, 66-67)
É aqui que introduzo o sujeito desta pequena etnografia: a estudante e designer de moda Inês Pereira (25 anos, a viver em Lisboa). Ao longo de várias semanas, acompanhei o processo de finalização do trabalho na coleção de roupa que criou como projeto final do seu mestrado em Design de Moda na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. Sou amigo da Inês há mais de dez anos e considero que partilhamos um contexto social e cultural semelhante, que me interessa investigar. O trabalho da Inês no seu projeto final deu-me um objeto de estudo concreto, cujo processo eu poderia observar, mas sobretudo interrogar, de perto. Também contribuiu o facto de ter candidatado este projeto a uma edição do Portugal Fashion, importante evento de moda em Portugal. A candidatura foi rejeitada, mas a decisão de se expor pela primeira vez a tal escrutínio público (fonte de desafio e hesitação) sinaliza um grau de confiança no trabalho, porventura visto como algo mais que um exercício. Por iniciativa própria, o projeto iniciado no contexto de uma legitimação académica passou a sujeitar-se também a um mecanismo de legitimação no sistema de moda. A roupa materializa assim o processo de aprendizagem e legitimação em cada um destes sistemas, uma afirmação que procurei sustentar com esta pesquisa etnográfica, começando pela intenção autoral que antecede o projeto e que constitui um primeiro momento de produção da sua densidade simbólica — a densidade de significados e valores presente no objetos, que são sempre construções culturais de um certo modo e contexto de produção (Weiner 1994, 394).
A fase inicial do projeto da Inês consistiu na elaboração de um briefing para si própria. O foco no método pelo qual se inicia a imaginação criativa sugere a tentativa de dominar a prática pelo seu próprio programa projetual sem, contudo, abdicar da lógica comum enunciado/resposta. A principal diferença, neste caso, é o exercício ser lançado por “imagens mentais” (descrições de vestuário, explicado à frente), ao contrário do que acontecia no curso, onde estava habituada a partir de “imagens visuais”. Na prática, esta mudança aconteceu com a extração de descrições de roupa de alguns dos seus livros preferidos, usadas depois como orientação para concepção de peças e coordenados [1]. Questionada sobre a escolha das obras, a Inês refere apenas que procurou aquelas com que se identifica e que são assinadas por autores publicamente respeitados [2], acrescentando que as frases escolhidas não pretendem comunicar qualquer significado. O resultado de quase um ano de trabalho iniciado por esta premissa manifesta-se em seis coordenados: sobretudo de cabedal, calças e blusa (C1); camiseiro e calças (C2); vestido (C3); fato-macaco (C4); fato com blazer e calças (C5); camisa, vestido e corta-vento (C6). O contributo principal do método para o projeto não residiu no significado das obras escolhidas ou na mensagem criada através delas, mas sim na própria maneira de dar início ao fazer. A abordagem revela o investimento autoral no desafio da aprendizagem e situa a roupa numa primazia da prática que contamina o quotidiano. Esta é a expressão material da posição de estudante que constitui a densidade simbólica impressa, intencionalmente ou não, no seu trabalho. Com este ensaio tentei explorar de forma breve as relações estabelecidas entre ensino, prática e contexto num projeto académico de design de moda. Argumento ainda que o caso de estudo constitui a materialização de um habitus legítimo do fazer, que é também um fazer legítimo do habitus, por decorrer em contexto de aprendizagem académica. Destaco aqui a influência de Bourdieu, quando afirma que as condições de aquisição da competência cultural funcionam como uma “marca de origem”, permitindo apreender “modos de produção do habitus culto” (Bourdieu 2010, 127) e que “o habitus é, simultaneamente, princípio gerador de práticas objectivamente classificáveis e sistema de classificação dessas práticas” (Bourdieu 2010, 270). Adicionalmente, a dinâmica de habitus e campo, as maneiras de adquirir e produzir o gosto legítimo e, no geral, a sua teoria da prática, são conceitos que exploro direta ou indiretamente neste ensaio.

Fazer o Habitus
A realização da pesquisa etnográfica obrigou-me a perceber inicialmente como gerir a minha posição de alteridade mínima enquanto investigador. Considerei que não devia simular uma outra posição de maior afastamento ou ignorar o conhecimento que tenho acerca do meio em que a Inês vive, estuda e trabalha. A minha pesquisa focou-se sobre a prática em moda/na academia e a sua relação com o contexto, tomando a forma de entrevistas, conversas informais, consulta de documentação e contacto com a roupa. Foi neste processo que consegui identificar dois fatores determinantes para a pesquisa: a importância do fazer enquanto intenção autoral e o cruzamento deste fazer com a vida quotidiana. A principal implicação destes dois fatores no meu entendimento sobre a roupa do projeto foi ter-me incentivado a procurar nela — e no seu processo de criação — as marcas de um fazer da aprendizagem académica da moda, moldado pela agência individual da sua autora. A “apresentação” deste projeto em dois sistemas distintos, embora relacionados, acentua a diferença entre o meio académico e o meio profissional. Desde logo, obrigou a Inês a trabalhar com prazos diferentes, tendo a candidatura ao Portugal Fashion ocorrido antes de o projeto estar terminado, com várias peças num estado intermédio da sua formalização material. A Inês reconhece mesmo que a qualidade e acabamento das peças era insuficiente, da mesma forma que admite que o funcionamento do mundo profissional da moda será significativamente diferente do mundo académico. Este apontamento é importante para realçar novamente o facto de falarmos da prática em contexto escolar académico e o mesmo é válido para as implicações quotidianas enunciadas.
Parte fundamental da formação académica da Inês consistiu na realização de exercícios práticos. A sua relevância não é surpreendente, pois constituem momentos de aplicação do conhecimento teórico através da técnica, prometendo a recompensa do objeto – a roupa. Ainda assim, a verdadeira importância dos exercícios e aulas de costura só é reconhecida atualmente, em retrospectiva. Durante o curso, os exercícios práticos eram mais uma fonte de frustração do que de entusiasmo, por exigirem níveis de conhecimento e concentração que tinha dificuldade em atingir. Além disso, estes exercícios tinham de ser obrigatoriamente realizados no espaço da escola, onde se encontravam as ferramentas e máquinas necessárias. Desta forma, a prática configurava-se como um obstáculo, que foi sendo ultrapassado com o acumular de conhecimentos técnicos e de experiência. Há a assinalar, contudo, uma grande diferença entre os exercícios pontuais realizados ao longo do curso e os projetos maiores que acontecem apenas uma vez no ano letivo. A Inês destaca a importância destes momentos, dando o exemplo do seu projeto final de licenciatura (em grupo), do projeto final de 1º ano do mestrado e o atual projeto final de mestrado. O que torna estes “exercícios expandidos” numa proposta mais entusiasmante é o facto de serem apresentados ao público (interno e externo à faculdade), aumentando o grau de responsabilidade, mas também de aprendizagem, num esforço mais consequente. A ideia do que é ou não consequente num projeto é essencial para o caso de estudo. Questionada sobre o que é uma peça bem-sucedida de acordo com os seus critérios, a Inês refere que esta deve “cair bem” (no corpo), ser confortável, ter “bom aspecto” e corresponder de alguma forma ao seu gosto pessoal. Esta resposta reflete uma dualidade explicada por Daniel Miller na introdução de Clothing as Material Culture: o “estético e sensual — o aspecto e o toque da roupa, fonte da sua capacidade de objetificar o mito, a cosmologia e também a moralidade, o poder e os valores” (Miller 2005). Indo além da percepção direta das características materiais, a Inês refere que uma peça bem feita é também aquela que valida as decisões tomadas ao longo do processo, que por corresponder aos critérios enunciados anteriormente produz a recompensa de legitimar o fazer e o método. No seu projeto de mestrado, a maneira de fazer começou no enunciado que criou e ao qual se auto-propôs. O sucesso deste esforço não se mede tanto na capacidade da roupa “objetificar” frases retiradas de livros, mas antes na capacidade de o enunciado escolhido produzir bons resultados na forma de roupa.
Essencial para o fazer é a matéria-prima, o tecido. Considero útil evocar novamente Miller quando fala sobre o tecido nas sociedades do Pacífico: “A complexidade de todas as formas de relação é entendida pelo idioma e fibra do tecido, que não deve ser entendido como representação ou metáfora, mas como aquilo através do qual se entrelaçam esses entendimentos e expectativas” (Miller 2005). Quando questionei a Inês acerca do seu percurso nos estudos artísticos desde o ensino secundário, foram mencionadas várias possibilidades que ponderou seguir antes de chegar ao design de moda. Nesse sentido, referiu o apelo de o objeto da moda ser tridimensional, algo que as pessoas vestem, e de a prática não envolver necessariamente muito desenho manual ou trabalho minucioso em computadores. Perguntei se o tecido, e mais especificamente o trabalho com tecido, foi um factor decisivo para seguir os estudos em moda. Após alguma reflexão, foi-me explicado como o tecido se constituiu como outro grande, e paradoxal, obstáculo durante o curso. O principal motivo reside no difícil acesso a bons e diferentes tecidos, sobretudo por causa do seu elevado custo, incomportável para a maioria dos estudantes. Segundo a Inês, a própria indústria, apesar de fazer parcerias pontuais com escolas privadas, não facilita realmente este acesso, relatando vários episódios que ilustram uma realidade diferente.
Ainda que se possa constituir como obstáculo material, a escolha dos tecidos é absolutamente fundamental para o projeto. No caso da Inês, decorre sobretudo em lojas de rua e é normalmente auxiliada pela opinião do namorado. Os tecidos deste caso de estudo — algodão, lã, napa, tecido impermeável (não-especificado), sarja de algodão — foram adquiridos em duas lojas de Lisboa e outra de Braga, perfazendo a maior parte dos cerca de 400 euros que custou a execução de todo o projeto. Perguntei à Inês se, podendo gastar mais dinheiro, escolheria outros tecidos, ao que respondeu afirmativamente, que compraria “tecidos diferentes”, não necessariamente melhores, e que o faria através da internet. Sendo a maioria dos tecidos de cor plana, porventura a maior consequência da escolha desta matéria-prima é a paleta cromática resultante no conjunto. Esta provém maioritariamente do gosto pessoal mas também pode representar um processo de gestão da sua imagem enquanto autora. Isto deve-se ao facto de a Inês considerar que os seus colegas e professores a identificam com a criação de roupa preta, contra-argumentado que isso não corresponde à realidade, e que o azul e o cinza são as cores dominantes no seu trabalho. De facto, afirma até que chegou a evitar usar tecidos pretos em determinadas ocasiões para não fundamentar esta ideia, que pode estar relacionada, pressupõe, com a paleta escura do seu próprio guarda-roupa. Outras particularidades do processo de trabalho de uma estudante de moda podem ser observadas em marcas deixadas na roupa. Por exemplo, podem ser distinguidos dois tipos de costura: um mais preciso, feito pela Inês nas máquinas industriais da faculdade; e outro mais irregular, feito por costureiras em máquinas domésticas menos precisas. Idealmente, todas as costuras seriam como a do primeiro tipo, mas as máquinas de costura da faculdade têm de ser utilizadas à vez pelos alunos e o excesso de procura obriga quem não tem máquina em casa a recorrer ao serviço de terceiros. Alguns tecidos não perdoam erros de confecção, obrigando a começar tudo do zero quando eles acontecem. Em alternativa, os erros podem ser integrados na peça, seja como forma assumida (por exemplo, umas mangas mais curtas que o desejado inicialmente) ou como “cicatriz” (marcas e imperfeições que não são disfarçadas). Para a Inês, isto é uma lógica natural e assumida em cada projeto, porque o orçamento não permite grandes desperdícios de tecido e porque estas peças são feitas à mão e apresentadas como tal — parte do seu valor simbólico reside nas marcas que permitem aferi-lo, sem no entanto as desfigurar significativamente ou tornar inutilizáveis. Nesta descrição posso ainda incluir o último momento de trabalho que testemunhei: o fotografar das peças em estúdio. Mais uma vez, foram utilizados espaços e materiais da própria faculdade, reservados por um período de 30 minutos. A Inês fez de modelo enquanto o namorado tirou as fotografias, destinadas a registar e apresentar, de forma simples e documental, o resultado final do seu projeto de mestrado. O primeiro aspeto a registar nesta sessão é o transporte da roupa, que várias vezes ao longo do ano fez o percurso entre casa e faculdade, ora num autocarro, ora dentro de uma mala na traseira de um Uber, como na manhã em que a acompanhei. Além destes dois espaços, algumas peças passaram também por pequenas oficinas de costura, onde tiveram origem muitas das marcas imperfeitas que anteriormente mencionei. O transporte e acondicionamento da roupa é uma tarefa contínua durante todo o projeto e por vezes provoca imprevistos, como nesta sessão, onde faltou o adereço de uma das peças, esquecido em casa e assim fora do registo “oficial”. As fotografias foram feitas de maneira mais ou menos improvisada, com várias decisões criativas tomadas no momento, tais como que sapatos usar, que enquadramentos assumir ou como segurar o bolso de um casaco. A poucos dias da entrega final, as fotografias são tiradas com alguns pormenores inacabados, deixados para as últimas horas de trabalho a que a roupa será sujeita. Além das fotografias, os outros registos existentes deste processo são os desenhos originais e técnicos, os moldes (alguns reaproveitados de outros projetos), um arquivo de processo e pesquisa, alguns apontamentos em cadernos e o relatório exigido no mestrado. O improviso simples mas pragmático deste momento não só ilustra a natureza do trabalho da Inês, como se enquadra perfeitamente na proposta de ler a criatividade “para a frente” avançada por Tim Ingold ao caracterizar o fazer como “uma prática de tecelagem na qual os praticantes ligam os seus próprios caminhos ou linhas de ser com a textura das correntes materiais que constituem o mundo da vida” (Ingold 2010, 1).

Habitus do fazer
Os sinais que na roupa expressam materialmente as particularidades do processo são indicativos de uma maneira de trabalhar e viver como estudante de moda, um determinado habitus (Bourdieu 2010). O meio académico contribui para a construção deste habitus com a metodologia própria do ensino formal, que é sempre confrontado com outras forças sociais e com agência própria do estudante. No caso da Inês, que afirma ter aprendido tudo na universidade, a experiência académica produziu conhecimentos técnicos e teóricos essenciais para a carreira profissional. No curso desenvolveu capacidades de trabalho especializado, de integração em processos colaborativos, de apresentação pública do trabalho e de aproximação ao ritmo acelerado do sistema de moda. Mas os estudos superiores também lhe deram uma via concreta de interação autoral com o mundo. Durante as entrevistas, falámos várias vezes sobre o que a Inês imagina fazer na carreira que agora vai iniciar, sobressaindo sempre a ideia de “aprender algo novo” com o trabalho, de experimentar práticas diferentes dentro da moda e de não acabar a fazer algo repetitivo. Reforçando a noção de que a sua roupa expressa uma maneira específica de trabalhar a moda no contexto académico, noto que a aprendizagem desempenha um papel importante na produção de uma recompensa pessoal oriunda da prática. Por sua vez, a aprendizagem prática e teórica no campo da moda decorreu, quase totalmente no meio académico, sendo complementada com recurso habitual à internet (sites de moda), a revistas impressas (poucas, por serem caras ou difíceis de encontrar) e a outras leituras dispersas sobre a disciplina. Além disso, destaca-se a importância da visualização de documentários sobre moda e de filmes e séries, sobretudo de época, onde o guarda-roupa e a caracterização são de especial interesse. Este último aspecto acentua a perspectiva cultural que a Inês desenvolve sobre a moda e como ela pode configurar uma inspiração criativa e metodológica, tal como pode ser conferido no uso de citações literárias no projeto de mestrado. Sobre as influências, acredita não as procurar e ser mais influenciada pelo que vê e ouve sem ter um propósito utilitário. Esta inspiração casual é ainda mais evidente no seu olhar sobre a roupa que vê os outros vestir. A observação do vestir alheio, feita nas ruas, foi desenvolvida com a frequência do curso e do próprio mundo da moda e acaba por influenciar a roupa que a Inês desenha, expressando uma certa visão da cidade e de quem a habita.
Devo aqui explicar melhor a questão do que a roupa expressa. Até agora, referi ter encontrado nesta roupa a expressão de um habitus (da prática) e de uma visão (sobre a cidade e a cultura), contudo, a Inês não vê necessariamente o seu trabalho como uma forma de expressão. Afirma que é apenas algo que gosta de fazer, trazendo novamente a prática para o centro da discussão. O seu processo de trabalho, ainda que consciente do método, não é particularmente metódico, rendendo-se a um certo acaso do quotidiano, do consumo de media, da roupa dos outros (mas não tanto da tendência). Esta integração sem esforço da vida diária no trabalho da moda é o que me faz afirmar que a roupa criada pela Inês expressa também uma visão do mundo, uma disposição estética constitutiva do habitus legítimo da moda, adquirido pelos meios legítimos. Embora possam não ser intencionais, as consequências desta integração são compreendidas pela Inês, que vê no seu trabalho um reflexo do contexto. A propósito, fala não só da forma como a experiência estética se materializa na roupa, mas também de como as limitações de orçamento e alguns cuidados ecológicos (que são pontuais e não uma grande preocupação) condicionam materialmente o fazer. No cruzamento entre a prática e o quotidiano, ambos se influenciam mutuamente. O trabalho na roupa é orientado por condições materiais concretas e por uma experiência estética do mundo, que por sua vez é produzida em relação à prática, estudo e frequência da moda. Esta dinâmica é determinante numa identidade que se constrói, em parte, no que o indivíduo faz — para a Inês é declaradamente importante fazer algo interessante, não-repetitivo, e aprender com isso. Assim, o trabalho em moda promove um certo tipo de constituição pela materialidade, centrada mais no fazer do que no vestir. Por exemplo, a Inês valoriza o ritmo rápido da moda, que diz ser um antídoto à sua tendência para procrastinar. O vestir, por sua vez, produz relações diferentes com a roupa. Além de afirmar não pensar demasiado no seu próprio vestuário, a Inês considera que isso se deve, em parte, à quantidade de tempo que passa a pensar em roupa num contexto de trabalho. A propósito, perguntei-lhe se tinha desenvolvido algum apego emocional com a roupa desta coleção, ao que respondeu negativamente, acrescentando que, no entanto, o desenvolvera relativamente ao desafio do projeto.
Termino relembrando a intenção original do trabalho aqui discutido: acabar um mestrado. O projeto tem de ser feito e avaliado para que se cumpra oficialmente o investimento educativo feito ao longo de vários anos. A necessidade intrínseca de legitimação está, assim, na raíz das intenções, além de delimitar o campo específico em que a prática ocorre. Mas ao mesmo tempo que constringe, torna-se campo para o jogo do fazer, que possibilita a materialização da agência individual na roupa e que contém em si uma interação quotidiana com o contexto social, cultural e político. No espaço social, esta roupa tem ainda um futuro incerto. Poderá ser guardada, vendida ou oferecida — usada ou não. Em qualquer dos casos, desenvolverá a sua própria agência, cada vez mais afastada das intenções que estiveram na sua origem. Aqui podemos voltar à anterior descrição de Tim Ingold sobre o fazer e relacioná-la com a agência social dos objetos dentro de “fluxos da materialidade”, onde:
(…) as coisas não estão ativas por estarem imbuídas de agência, mas pelas maneiras como são apanhadas nas correntes do mundo da vida. As propriedades dos materiais não são, então, atributos fixos da matéria, são processuais e relacionais. Descrever estas propriedades é contar as suas histórias (Ingold 2007, 1).
Isto significa que, mesmo alienada da retórica académica que agora a defende, a roupa terá sempre marcada na sua materialidade o testemunho de um certo fazer num certo contexto. Ainda que o seu valor venha a ser definido por fatores e ponderações distantes ao plano da produção, foi no campo da prática que uma interação humana com o mundo material deu início à cadeia de acontecimentos que resultaram num objeto passível de ser valorizado.