“Zeitgeist”: Design and Reflexivity

Um novo espaço conceptual para o design

Design and Reflexivity é o nome do ensaio escrito em 1994 pelo designer holandês Jan Van Toorn, apelando aos designers que assumam um papel ativo e responsável perante a realidade na qual desenvolvem a sua atividade. No centro da questão encontra-se o domínio aglomerante da simbologia da cultura dominante. Legitimando-se a si própria e servindo interesses particulares sob o falso pretexto do interesse universal, a cultura dominante obriga culturas diferentes a adotarem a sua simbologia. Esta, por sua vez, não reflete a realidade, o que para o autor exige a criação de um novo espaço conceptual, evitando a destruição da experiência do real. Para isto é então necessário que os designers renunciem às soluções formuladas pela cultura dominante, que adotem posições radicais e que abandonem o círculo do bom-senso cultural. O mesmo é dizer que cada caso exige uma análise crítica e reflexiva que permita chegar a soluções diferentes daquelas apresentadas pelos aparelhos ideológicos do poder instituído. Para Van Toorn, os designers devem opor-se ao “design sob a forma de design”, apelando a públicos mais abrangentes, produzindo mensagens e discursos para toda a comunidade e não para uma “elite”.

Van Toorn parece sumariar a vontade que surgira no anos 60 de questionar a neutralidade objetiva e a tirania da forma. Design Reflexivity é um apelo para o futuro que perspetiva a possibilidade de uma mudança de paradigma. Ao falar de “um novo espaço conceptual” para o design, Van Toorn dá sequência às ambições pós-modernas de um novo espaço de respiração para a prática de um design inclusivo, cuja objetividade reside na análise do contexto real e não mais da pura teorização da forma. O objetivo é pensar além do dogma, tomar caminhos alternativos e entender o design como uma prática feita de tantas soluções como problemas. Sob este pretexto, colocamos em diálogo dois objetos que refletem a irreverência do texto de Van Toorn, sendo anteriores à sua publicação, numa procura das evidências que transformam o apelo de Design Reflexivity numa proposta legítima em vez de uma utopia.

Dan Friedman (EUA USA 1945-1995). Candeeiro de Mesa Three Mile Island. Design: 1985. Ráfia, contas de vidro, barro e plástico. 71xD26cm. Produção: Galerie Néotu. MUDE. Coleção Francisco Capelo P.0228

Learning from Three Mile Island

Partindo da coleção do MUDE, encontramos o caso paradigmático de Dan Friedman e o seu candeeiro Three Mile Island, de 1985. Com uma aparência estranha e uma acentuada dimensão kitsch, esta peça está carregada de simbologia e colagem de significados. De certa forma, Friedman põe em prática uma reinterpretação de Venturi, Scott Brown e Izenour. Se em Learning From Las Vegas estes autores propõem uma análise e aceitação da paisagem simbólica comercial, Friedman parece recorrer à imagética simbólica da contracultura. As contas de vidro, a ráfia e a base de barro evocam uma linguagem vernacular artesanal das pequenas comunidades alternativas ou até indígenas. Tudo contracena, contrasta e dialoga com a colagem direta de uma imagem do complexo nuclear no abajur do candeeiro. O simbolismo é dominante, incluindo na função. O ato de ligar o candeeiro deve levantar a questão sobre a origem da energia que o acende e sobre as consequências da passividade face aos perigos da energia nuclear. Friedman transforma um assunto de dimensão global numa questão pessoal, tangível e doméstica, trata-se de design de comunicação veiculado pelo design de produto. O método de fabrico, mais próximo do artesanato e da manufatura do que da indústria, aumenta o valor simbólico e interventivo — exemplo disso é o facto de existirem várias versões do candeeiro, todas diferentes umas das outras, renunciando à uniformidade industrial. São adotados métodos de produção e conceptualização alternativos à cultura dominante, de forma a levantar questões sobre os problemas reais da sociedade global.

Verdadeiro exercício teórico e manifesto político, em Three Mile Island Friedman veicula tanto uma crítica interna ao design — proposta construtiva daquilo a que chamava o Modernismo Radical — como uma crítica externa e social. Além de radical, a atitude de Friedman é provocadora, especulativa, incerta quanto aos resultados mas determinada a melhorar a condição da sociedade e das pessoas, como afirmou em 1994 numa entrevista à revista Eye, “uma reafirmação ideológica das raízes da nossa modernidade, ajustada para incluir mais da nossa diversidade de culturas, histórias, pesquisas e fantasias.”

Cartaz Q. And babies? A. And babies. Art Workers Coalition (design Peter Brandt, fotografia Ronald L. Haeberle). 64x97cm, papel, 1970. Zürcher Hochschule der Künste, ZHdK / Museum für Gestaltung Zürich, MfGZ / Plakatsammlung

Contra o museu, pelo museu

Em diálogo com Three Mile Island colocamos o icónico cartaz And Babies, criado no seio da Art Workers’Coalition, sendo os créditos atribuídos a Peter Brandt. Esta coligação de artistas, uma das mais influentes da segunda metade do século XX, nasceu em janeiro de 1969 após uma ação simbólica do escultor Vassilakis Takis, que retirou uma obra sua da exposição “The Museum as Seen at the End of the Mechanical Age”, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. A falta de diálogo do MoMA com os artistas inspirava uma revolta coletiva contra as instituições museológicas da cidade. Assim, sob a denominação de Art Workers’Coalition, vários artistas juntam-se e debruçam-se sobre o tema da responsabilidade dos museus, exigindo uma abertura à comunidade e uma maior consciência face aos problemas sociais da época. Em abril desse mesmo ano, a coligação leva a cabo uma audição pública. Algumas das sugestões apresentadas indicavam caminhos alternativos para a arte, existindo algumas propostas bastante radicais, como o encerramento de todos os museus de Nova Iorque enquanto decorresse a guerra do Vietnam.

É neste contexto de grande revolta e crítica construtiva que em 1969 a AWC propõe ao MoMA que seja criado um cartaz de protesto à guerra do Vietnam para ser distribuído massivamente em todo o país. A ideia é inicialmente aceite pelo museu, que mais tarde retira o seu apoio ao projeto por considerar que o MoMA tinha a obrigação de se distanciar de qualquer posição política. Este era exatamente o “cinzentismo” moral que a AWC combatia. Mas isto não impediu a produção do cartaz, cuja mais importante apresentação aconteceu diante do Guernica de Picasso, na Galeria do MoMA. O cartaz consiste numa controversa fotografia do massacre de My Lai, no Vietnam, da autoria de R.L. Haeberle, à qual se sobrepõe a transcrição de uma entrevista de um soldado norte-americano, um gélido “Q. And babies? A. And babies. ”Este momento horrível eternizado no cartaz assinalava um dos pontos mais marcantes do ativismo político nos Estados Unidos. Não é um cartaz destinado a uma fruição passiva, é antes uma arma visual, que para lá do choque, urgia ao envolvimento de artistas e designers num combate ideológico contra a hegemonia da cultura dominante. Só uma reflexão aprofundada da atividade podia levantar questões pertinentes, e só um pensamento radical se traduziria em respostas consequentes.


Guilherme Sousa, Laura Araújo, Maria Dominguez, Tiago Moura (ed. Frederico Duarte), 2014
“Design and Reflexivity” de Jan Van Toorn
in Armstrong, Helen (ed.) Graphic design theory: readings from the field;
Princeton: Princeton Architectural Press, 2009
ISBN 978-1568987729
Este texto foi originalmente publicado na exposição online Zeitgeist do MUDE – Museu do Design e da Moda: https://www.mude.pt/exposicoesonline/zeitgeist-2_1.html